Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) - Estudos do Art 1º ao 5º

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Por Divad Wathils

Natureza da LICC

Aprouve ao legislador colocar fora do corpo do Código Civil de 1916 normas que concernem à revogação das leis, a sua aplicação e interpretação e ao direito internacional privado. Esta técnica foi derivada do modelo alemão, conservando a matéria numa lei introdutória.

A LICC não é parte integrante do Código Civil, é autônoma ou independente, é lei introdutória do código civil, mas não pára nisso, por conter limitações específicas as leis em geral. Trata-se de uma norma preliminar à totalidade do ordenamento jurídico nacional, seus artigos constituem coordenadas essenciais às demais normas jurídicas, sejam civis, processuais, comerciais, administrativas, tributárias etc., e são aplicáveis a quaisquer leis.

Maria Helena Diniz a chama de lex legum, um conjunto de normas sobre normas. Constituindo um direito sobre o direito (“ein Recht über Recht”, “Überrecht”, “surdroit”, “jus supra jura”), um direito coordenador de direito, que não rege as relações pessoais e as de vida, mas sim normas.

A LICC não engloba apenas o direito civil, mas os diversos ramos do direito público e privado, em especial o Direito Internacional Privado; e uma norma cogente, aplicável a todas as leis.

Conteúdo e Funções da LICC

O Decreto-Lei 4.657/42 disciplina as próprias normas jurídicas, assinalando-lhes o modo de entendimento, predeterminando as fontes do direito positivo, a classificação hierárquica dos preceitos, indicando dimensões espaço-temporais (DINIZ usa espácio, mas nós não, por tratar-se de um regionalismo, ao que se deve preferir espaço, HOUAISS).

A Lei de Introdução é um código de normas, já que tem por conteúdo a disciplina:

  1. do início e da obrigatoriedade da lei (art 1º)

  2. do tempo de obrigatoriedade da lei (art 2º)

  3. da garantia da eficácia global da ordem jurídica, não admitindo a ignorância da lei vigente (art 3º)

  4. dos mecanismos de integração das normas, quando houver lacuna legal (art 4º)

  5. dos critérios de hermenêutica (art 5º)

  6. do direito intertemporal, assegurando a certeza, segurança e a estabilidade do ordenamento (art 6º)

  7. do direito internacional privado brasileiro (arts 7º a 17), abrangendo normas pertinentes à pessoa e a família (arts 7º e 11), aos bens (art 8º), às obrigações (art 9º), à sucessão por morte ou por ausência (art 10), à competência judiciária brasileira (art 12), à prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro (art 13), à prova do direito alienígena (art 14), à execução de sentença proferida no exterior (art 15), à proibição do retorno (art 16), aos limites da aplicação de leis, atos e sentenças de outro país no Brasil (art 17).

  8. dos atos civis praticados, no estrangeiro, por autoridades consulares brasileiras (arts 18 e 19)

LICC e a questão da aplicação das Normas jurídicas

A norma deve ser geral, referindo-se a uma série de casos indefinidos, afastando-se e evitando sua conformação a casos concretos.

O afastamento da norma ao fato cria um hiato, embora sanável. A norma é um modelo funcional que contém, em si, o fato. As dificuldades de qualificação de um fato à norma podem ser devidas a dois fatores:

  1. A falta de informação sobre os fatos do caso.

  2. A indeterminação semântica dos conceitos normativos

A palavra lacuna é às vezes usada para definir os problema acima (KANTOROWICZ), causando confusões. Alchourròn e Bulygin introduziram algumas distinções terminológicas, diferenciando as “lacunas de conhecimento” das “lacunas de reconhecimento”:

Lacunas de conhecimento referem-se a casos individuais que, por falta de informação fática,

o juiz não sabe se pertencem ou não a uma determinada classe ou tipo.

Lacunas de reconhecimento são originadas pelo que Hart denomina de “problema de penumbra”, que são originadas de certos problemas de semântica. Não são lacunas jurídicas tradicionais, ou seja, não têm nada que ver com problemas de completude ou incompletude da lei.

A lacuna constitui um estado incompleto do sistema que deve ser aterrado ante o princípio da plenitude do ordenamento jurídico. Daí a importante missão do art 4º da LICC, que dá ao magistrado, impedido de furtar-se a uma decisão, a possibilidade de integrar ou preencher a lacuna, de forma que possa chegar a uma solução adequada.

Ao lado do princípio da plenitude do ordenamento jurídico situa-se o da unidade da ordem jurídica, que pode nos levar a correção do direito incorreto. Se se apresentar uma antinomia real, ter-se-á um estado incorreto do sistema, que necessitará ser solucionado. Para tanto, o jurista lançará mão de uma interpretação corretiva guiado pela interpretação sistemática (arts 4º e 5º), mantendo-se dentro dos limites demarcados pelo direito. Ao fazê-lo, o magistrado deverá indicar quais os critérios que foram usados.

LICC e a vigência espaço-temporal

Em relação aos conflitos de tempo, a LICC visa analisar e apontar as soluções para os seguintes problemas:

  1. os alusivos aos princípios norteadores da efetividade das leis desde sua vigência

  2. os relativos às conseqüências da vacatio legis, que possibilita a divulgação da lei nova, sendo que, enquanto não escoar tal prazo, a norma revogada continuará em vigor, apesar de já publicada a lei que o revogou

  3. os atinentes à excepcionalidade da norma com eficácia suspensa e seus efeitos no plano hermenêutico

  4. os condizentes com a permanência ou não da norma. A permanência da norma indica que a lei, uma vez promulgada e publicada, obrigará indefinidamente até que seja revogada por outra lei

  5. os que dizem respeito à aplicação da lei nova ou da antiga já revogada aos efeitos decorrentes de relação jurídica pretérita.

Com isso, percebe-se que três são os princípios relativos à aplicação da lei no tempo especificados na LICC:

  • o da obrigatoriedade

  • o da continuidade

  • o da irretroatividade

A LICC prevê também princípios para solução de antinomias no espaciais, originários das relações internacionais. É claro que a lei, por ser criadora e criatura dos estados soberanos, apenas terá vigência dentro do Estado que a promulgou. Todavia este princípio não pode ser aplicado de modo absoluto, sem comprometer a soberania nacional e a ordem da sociedade internacional, os Estados modernos têm permitido que, em seu território, se apliquem, em determinadas hipóteses, normas estrangeiras, admitindo destarte a extraterritorialidade.

Territorialidade e extraterritorialidade correspondem a tendências legislativas contidas na LICC. A territorialidade corresponde aos efeitos das leis sem se considerar as estrangeiras. A extraterritorialidade se relaciona com aos efeitos das leis além das fronteiras do país, havendo permissão legal ao juiz para aplicar normas estrangeiras.

Análise Técnico-científica

Trataremos a seguir da LICC nos seus artigos 1º a 5º, por tratarem de matéria pertinente ao estudo da hermenêutica jurídica.

O Processo Legislativo (art 1º)

A maioria dos Estados modernos delega a formulação do direito exclusivamente ao legislador. Apenas nos países anglo-saxões é que há forte predominância do direito consuetudinário.

O processo legislativo vem a ser um conjunto de fases constitucionalmente estabelecidas, pelas quais há de passar o projeto de lei, até a sua transformação em lei vigente. Em regra os trâmites constitucionalmente previstos são: iniciativa, discussão, deliberação, sanção, promulgação e publicação.

Revogação (art 2º)

Revogar é tornar sem efeito uma norma, retirando-se sua obrigatoriedade. É um gênero de duas espécies:

  1. a ab-rogação, que é a supressão total da norma anterior por ter a nova lei regulado inteiramente a matéria, ou por haver entre ambas incompatibilidade implícita ou explícita

  2. a derrogação, que é tornar sem efeito parte da norma. A norma derrogada não perderá sua vigência, pois somente os dispositivos atingidos é que perderão a obrigatoriedade.

A revogação poderá ainda ser:

  1. expressa, quando a norma revogadora declarar qual a lei que está extinta em todo ou em parte

  2. tácita, quando houver incompatibilidade entre a nova lei e a antiga, mesmo que naquela não conste a expressão “revogam-se as disposições em contrário”.

Possibilidade de existência da antinomias aparentes e reais (art 2º)

A antinomia real existe quando, segundo Tércio Ferraz Jr., houver oposição total ou parcial entre duas normas, emanadas de entidades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permiti-lhe uma saída nos quadros de um dado ordenamento. Os critérios de solução (hierárquico, cronológico e da especialidade) existentes não resolverão, ficando o intérprete e aplicador sem meios para escapar da antinomia.

Para haver a antinomia real é necessário a concorrência de três critérios: a) incompatibilidade; b) indecibilidade; c) necessidade de decisão.

A antinomia aparente se dará se os critérios de solução forem suficientes e integrantes do ordenamento jurídico vigente. São os critérios de solução das antinomias:

  1. critério hierárquico (lex superior derogat legi inferiori);

  2. critério Cronológico (lex posterior derogat legi priori);

  3. critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali)

Repristinação (art 2º)

Quando o legislador derroga ou ab-roga uma lei que revogou a anterior, fica a questão de saber se a norma anteriormente revogada ganha força novamente, recuperando sua vigência, independente de declaração expressa.

Pelo art 2º, parágrafo 3º, a lei revogadora de outra lei não terá efeito repristinatório sob a velha lei, a não ser que haja expresso pronunciamento na lei atual. Esse dispositivo de fato, proíbe a repristinação automática.

Obrigatoriedade da norma (art 3º)

A lei necessita ser amplamente reconhecida pelos seus destinatários. A lei depois de publicada e decorrido, se houver, o prazo de vacatio legis, tornar-se-á obrigatoria para todos, não cabendo a escusa do desconhecimento ou do erro. O princípio ignorantia juris neminem excusat repousa numa razão de interesse social, pois seria o caos se a obrigatoriedade de uma lei dependesse de seu conhecimento ou da ignorância do qualquer um de seus destinatários.

Questão das lacunas no direitos (art 4º)

Uma vez admitida a existência de lacunas jurídicas, surge sua identificação ou constatação. Para suplantar as lacunas a LICC e a legislação correlata nos dispõe dos seguintes meios:

  1. a analogia

  2. o costume

  3. os princípios gerais de direito

  4. a eqüidade

O caráter hermenêutico do art 5º

O artigo 5º da LICC surge como ferramenta ao magistrado para legitimar o processo hermenêutico de interpretação das normas, conferindo aplicabilidade das normas jurídicas as relações sociais; estendendo o sentido da norma a relações novas, inexistentes ao tempo de sua feitura; temperando o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social. É a hermenêutica que contém os princípios e regras bem ordenadas que fixam os critérios que nortearão a interpretação.


Referências Bibliográficas

DINIZ, Maria H. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 12a Edição. Saraiva, São Paulo, 2007.

Links:

LICC - Texto completo:

http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del4657.htm

0 comentários: